Resumo:
O objetivo deste trabalho é analisar o direito de imagem, expressado no Código Civil Brasileiro de 2002, sob o viés da Dignidade Humana, inseridos na Constituição Federal de 1988. Com o advento do Estado Democrático de Direito, emergido após as revoluções liberais que marcaram o fim do Estado Absolutista, concebeu-se o homem como “senhor de si mesmo”. Procura-se entender, assim, o aspecto negativo ligado a má conservação desse direito, de modo a conceber a perda da ideia, na contemporaneidade, do homem como senhor de sua singularidade, isto é, de suas criações individuais pela apropriação indevida de sua imagem por terceiros. Ademais, reflete, também, sobre a ideia da Dignidade da Pessoa Humana como intrínseca a uma verdadeira proteção desse direito.
1. A dignidade da pessoa humana presente na preservação do direito de imagem
“Uma imagem vale mais que mil palavras”. A frase do filósofo chinês Confúcio destaca, explicitamente, que a imagem, além de ser um instrumento importante para propagar maior facilidade de entendimento comparada a um conjunto de palavras, por exemplo, tem sua fundamentalidade atrelada ao fato de ser elencada como um dos direitos da personalidade expressos no Código Civil Brasileiro de 2002. Nesse sentido, o Enunciado n° 286 do CJF (Conselho da Justiça Federal) salienta que esses são considerados como “direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade…”. Ademais, os mesmos estão ligados aos indivíduos para sempre e sob qualquer circunstância. Pois bem, como já mencionado, é dentro desses direitos que se insere o direito à imagem, mais evidente na ideia de “direito à própria imagem”, ou seja, na faculdade que os indivíduos têm de usar a própria imagem e reproduzi-la, assim como impedir que terceiros o façam, indevida ou injustificadamente. Logo, é primordial analisá-lo sob o viés da dignidade humana, princípio assegurado na Constituição Federal de 1988, visando à égide das necessidades vitais básicas de cada indivíduo na sociedade civil.
O advento do Estado Democrático de Direito, emergido após as revoluções liberais que marcaram o fim do Estado Absolutista, concedeu ao homem a liberdade de ser “o senhor de si mesmo”. Nesse viés, tal Estado entende que a democracia só é possível quando os direitos fundamentais e sua ordem são garantidos no cotidiano dos seres humanos através de uma proteção jurídica. Seguindo essa linha de pensamento, é essencial enfatizar que momentos de rompimento constitucional são causados pelo amadurecimento da sociedade frente à Constituição, surgindo com o fito de alterar legislações passadas que não eram suficientes para acatar com todos os compromissos propostos relacionados à eficácia das normas constitucionais e à efetividade de garantias individuais e coletivas. Hodiernamente, no entanto, ainda se observa a busca pela descoberta do aspecto negativo ligado à falta da efetivação plena e satisfatória da conservação do direito de imagem, haja vista violações constantes e aparentes oriundas da apropriação indevida de imagem por terceiros.
Compreende-se que a relação intrínseca de conexão com a dignidade da pessoa humana apresenta influência, uma vez que ressalta-se a diferenciação do princípio aplicado na teoria e sua materialização na prática quando observamos, por exemplo, um cenário brasileiro agravado por uma intensa desigualdade social-econômica entre classes sociais opostas e, consequentemente, a divergência notória em se tratando da ponderação de princípios, em situações conflituosas, não sendo preponderado o mínimo existencial de vida digna.
Nota-se que, apesar da existência de diversos movimentos do constitucionalismo brasileiro, os direitos fundamentais da personalidade - como, o direito de imagem - ainda se apresentam em processo deficitário em razão da tutela da dignidade e, amiúde, se há uma ruptura na prática desses, há um “naturalização” por parte da sociedade. Essa situação torna-se uma equação da problemática preocupante, já que configuram garantias presentes na Constituição (artigo 5°, inciso X) e essa, por sua vez, é digna de força constitucional. Essa pujança se baseia na comunidade e, se os próprios indivíduos não a enobrecem, a mesma é prejudicada com sua perda em momento posterior.
2. A problemática atual: senhor de si mesmo?
Diante da falta de materialização da proteção dos direitos fundamentais no cotidiano da vida humana, cabe analisar a problemática do homem enquanto "senhor de si mesmo" e o uso de sua imagem no contexto de digitalização do século XXI. Se na prática, desde a pós-modernidade, vê-se a egressão da crença no pensamento socrático do homem enquanto um ser capaz de controlar suas ações, criações e as repercussões delas, na contemporaneidade isto torna-se definitivo.
Com o desenvolvimento tecnológico, os meios de comunicação e registro tornaram-se diversos, como o rádio, a televisão e a revista, e, diante disso, a imagem enquanto direito de personalidade1 conquistou evidência nos debates jurídicos, passando a ser dividida em imagem-retrato2 e imagem-atributo3. Isso porque o controle do uso e da disseminação da imagem do homem – que depende expressamente de sua autorização – em tais meios passou a ser cada vez mais desafiador. A convicção do autodomínio deixou de ser palpável em um mundo onde intervenções externas vinham de todos os meios, em um mundo cada vez mais conectado, sobretudo com a criação e o uso ascendente da Internet.
O advento da Internet facilitou a comunicação e o compartilhamento de informações de uma forma jamais antes vista. Com um fluxo de conteúdo constante e profuso, a gestão do que era produzido e reproduzido perdia alcance e a eficácia de garantias constitucionais. Por conseguinte, emergiu a necessidade de regulação jurídica do meio digital, um acontecimento recente não só no Brasil, como no mundo, o que pode ser demonstrado pelo Marco Civil da Internet4 e da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)5.
Com enfoque na proteção da privacidade, tais leis vieram para tornar público o que era feito com os dados dos usuários e conferir a eles a escolha de consentir ou não a respeito da manipulação de seus dados. No entanto, não só a privacidade – um dos direitos da personalidade – foi infringida pelo uso indevido da liberdade que a internet proporcionou durante anos, como também o direito à imagem, que pôde atingir a honra, violar a intimidade e prejudicar a vida privada de um indivíduo (GENTIL, 2022). Sob a ótica da Lei Geral de Proteção de Dados, a imagem é considerada um dado pessoal6 e, por vezes, se enquadra como um dado pessoal sensível7, um subtipo cuja tutela é específica no âmbito da aplicação da LGPD. A proteção de dados foi, inclusive, inserida formalmente no texto constitucional pela Emenda Constitucional n°115, de fevereiro de 2022, estando presente no art. 5°, inciso LXXIX.
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1 São direitos inerentes a cada indivíduo e são considerados absolutos; necessários; extrapatrimoniais; indisponíveis; imprescritíveis; impenhoráveis e vitalícios. No entanto, o direito de imagem enquanto direito de personalidade possui uma característica própria, qual seja a sua disponibilidade, uma vez cabe ao titular a permissão da concessão do uso de sua imagem.
2 Imagem-retrato pode ser definida como as características físicas, visíveis da figura humana.
3 Imagem-atributo é o conjunto de atributos que pode ser associado a uma pessoa, cultivados pelo próprio indivíduo e reconhecidos socialmente.
4 Lei 12.965/14 - Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.
5 Lei 13.709/18 - Lei Geral de Proteção de Dados.
6 Informações relacionadas às pessoas naturais identificadas ou identificáveis.
7 Informações relacionadas às pessoas naturais identificadas ou identificáveis que dizem respeito à origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dados referentes à saúde e à vida sexual e dados genéticos e biométricos.
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Dentro desse contexto, o desenvolvimento e o uso das redes sociais aceleraram de forma exponencial o compartilhamento de dados. Para se ter noção da dimensão da falta de domínio do uso da imagem que as redes sociais proporcionaram, em 2018, a brasileira Driely Meanda teve grande alcance na rede social Twitter ao expor que uma fotografia de seu rosto estava estampada em produtos de uma loja no Vietnã sem que ela tivesse sido consultada. Diante da repercussão do caso, a loja se pronunciou afirmando que apenas revendia os produtos, fabricados na China, e também informou que havia entrado em contato com a modelo, tendo ela concordado com o uso de sua imagem (ESTADÃO, 2018).
Embora ela tenha posteriormente anuído com o uso de sua imagem, a violação deste direito gera o dever de reparação, independente da prova de prejuízo, conforme o art. 20 do Código Civil8 e a súmula 403 do STJ9 . Tendo isso em vista, em 2021, a ex-bbb e influencer, Camilla de Lucas viu sua imagem sendo utilizada para fins comerciais sem ter sido autorizada. Sendo assim, entendeu que a loja estava "se aproveitando de seu engajamento" (MIGALHAS, 2023) e pediu a exclusão de publicações, bem como a exclusão do perfil da loja e indenização por danos morais. No entanto, como um dos posts que a influencer desejava ser removido já havia sido excluído pela demandada e ela havia mencionado a loja e divulgado seus produtos de forma explícita e espontânea em seu canal do Youtube em 2020, entendeu-se que houve "consentimento implícito" do uso e reprodução de sua imagem referente ao conteúdo do vídeo e (carência da obrigação de fazer) o pedido foi julgado improcedente (BERTOLDO, 2023, processo 1071847-07.2021.8.26.0100 - lauda 10). Logo, é fundamental o cuidado e a cautela com o que é publicado nas redes sociais e de que forma deseja-se ver a sua própria imagem sendo utilizada.
Considerando que a regulamentação jurídica do que é publicado e compartilhado nas redes é recente e a sua aplicação ainda se encontra em processo de aperfeiçoamento, casos em que o direito de imagem é infringido continuam sendo recorrentes. É basilar entender que tal direito, embora seja socialmente minimizado, sobretudo no meio digital, é uma garantia constitucional, presente no art. 5°, incisos V, X e XXVIII, da Constituição Federal. Além disso, antes mesmo da popularização da Internet, existiam regulamentações no sentido de proteger a pessoa e alertar sobre o tratamento de imagem, como Lei Municipal n° 43.236/2003 de São Paulo, que dispunha sobre a obrigatoriedade de alertar aos cidadãos sobre filmagens em ambientes, com placas informativas.
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8 "Salvo se autorizada, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão de palavras, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama, ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais".
9 "Independente de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada da imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais"
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Apesar de ser qualificada como uma garantia fundamental, na prática, vê-se diversas exceções ao direito de imagem. A publicação de fotografias de interesse geral, como é o caso de materiais com fins didáticos, científicos, esportivos e jornalísticos, prescinde de autorização, uma vez que o direito de imagem cede em favor do interesse público e há presunção de que há interesse público quando o retratado exerce funções públicas (BORGES, 2004). Esse uso, no entanto, deve desempenhar sua função e não ter finalidade lucrativa. Há também a relativização no caso de celebridades e pessoas públicas, o que não impede que haja violações e danos à vida pessoal, que podem e devem ser devidamente tratadas no âmbito cível e, por vezes, penal.
Portanto, tendo em vista a dimensão do descontrole proporcionado pela Era Digital, torna-se evidente que o direito de imagem tem sido constantemente violado e o controle dessa violação se mostra carente de meios eficazes. No entanto, não é um direito absoluto e, logo, cabe aos titulares se atentarem às exceções e ao que consentem durante seu uso na Internet, tendo em vista que, enquanto plenos de sua capacidade, reconhecem não ter controle sobre isso em sua totalidade, mas devidamente alertados, também possuem responsabilidade.
3. O homem como súdito de si mesmo
Desde o século XVIII, especificamente após as revoluções liberais, o homem saiu do canto da história para assumir, mais uma vez, seu centro e controle. O caráter do indivíduo como senhor de si mesmo se deu, em boa parte, graças ao jusnaturalismo, no qual postulou alguns direitos, tais como a vida e a liberdade, como algumas de suas qualidades intrínsecas. Desde então, nossa espécie pôde testar e se valer de todas as criações de seu espírito.
Após esse marco, houve uma imensa produção de códigos que protegiam essas qualidades em defesa da integridade física e moral do indivíduo, seja “como expressão do pensamento jusnaturalista, seja abstraindo-se dele” (PEREIRA, 2016, p. 201). Não obstante o Código Civil Brasileiro tratar sobre os direitos da personalidade, a Constituição Federal de 1988 assegurou o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), como uma cláusula geral de tutela da personalidade. Esses direitos, cabe dizer, foram conquistas do século passado. Levando esse entendimento, assim, sua proteção é essencial para sua devida conservação, legitimando a atitude do titular do direito a denunciar a lesão ou ameaça quando houver e couber.
Além disso, sabe-se que a Constituição Federal assegura o direito de resposta proporcional ao agravo causado (art. 5º, V). Esse mesmo inciso garante o direito à imagem e enuncia a possibilidade de indenização por dano material ou moral. A proteção à imagem, importante dizer, não diz respeito apenas a imagem-retrato, mas também a imagem-atributo, da qual “cada um é senhor exclusivo” (PEREIRA, 2016, p. 214).
Após essa grande conquista do direito moderno, o controle da difusão da imagem não autorizada é crescente, ameaçando e indo contra não apenas a norma em si, mas, também, a um avanço civilizatório e ao valor da pessoa humana. O homem passa, mais uma vez, a um cenário de súdito, descaracterizando uma de suas qualidades essenciais: a titularidade de sua criação.
Constatar isso apenas foi possível graças ao estudo do direito civil-constitucional, isto é, por entender o direito de imagem à luz da Constituição e um de seus princípios basilares: A dignidade humana. Ora, é visível que, uma vez que o indivíduo não possui mais a decisão final de ter sua imagem distribuída ou não, esse princípio é violado. Esse ponto axiológico, entretanto, não é, aqui, entendido apenas como um critério individual, mas também coletivo, já que a sua não proteção acarreta uma série de outros problemas que afetam, também, a esfera pública.
Por fim, apesar da problemática ser de complexa solução, há meios para dispor. A maior regulação das redes sociais é um ponto importante, senão essencial para o mundo contemporâneo do século XXI. O Estado deve prover a garantia do direito de imagem, sob pena da vontade humana se tornar, mais uma vez, súdita de senhores.
Produzido por:
Bruno Rodrigues
Júlia Corrêa
Larissa Lacerda
Referências Bibliográficas:
BELTRAME, Renan. Saiba mais sobre o direito de imagem, sua proteção constitucional e exceções. 01 de setembro de 2022. Disponível em: <https://www.aurum.com.br/blog/direito-de-imagem/>. Acesso em 29 mar de 2023
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Comarca de São Paulo). Sentença. 1071847-07.2021.8.26.0100. 21ª vara cível. Requerente: Camilla Jean Santos de Lucas. Recorrido: Dassi Boutique Comércio Varejista de Vestuário Ltda. e outros. Juíza de direito: Maria Carolina de Mattos Bertoldo. 14 de fevereiro de 2023.
BORGES, Daniela Vasconcelos Lemos de Melo. Direito à imagem. 27 de maio de 2004. Disponível em: <https://www.google.com/amp/s/www.migalhas.com.br/amp/depeso/4883/direito-a-imagem>. Acesso em 29 mar de 2023.
ESTADÃO. Brasileira descobre camisetas vendidas com seu rosto na Ásia e história viraliza. 23 de julho de 2018. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/emais/comportamento/brasileira-descobre-camisetas-vendidas-c om-seu-rosto-na-asia-e-historia-viraliza-no-twitter/>. Acesso em 25 mar de 2023.
FALCÃO, Daniel e PEROLI, Kelvin. Imagem, dado pessoal sensível?. 28 de maio de 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-mai-28/observatorio-constitucional-imagem-dado-pessoal-s ensivel#>. Acesso em 28 mar de 2023.
GENTIL, Cristiane. 8 perguntas e respostas sobre LGPD e direito de imagem. 08 de fevereiro de 2022. Disponível em: <https://main.i-maxpr.com/blog/post/8-perguntas-e-respostas-sobre-lgpd-e-direito-de-imagem>. Acesso em 29 mar de 2023.
MIGALHAS. Camilla de Lucas não será indenizada por uso indevido de imagem. 16 de fev 2023. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/quentes/381776/camilla-de-lucas-nao-sera-indenizada-poruso-indevido-de-imagem>. Acesso em 28 mar de 2023
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